Notícias - Direitos Humanos“Precisamos de aliados! E aliados brancos”, conclama a artista Elisa Lucinda em palestra de lançamento do Projeto Tenório
Palestrante chamou a atenção para as muitas inconstitucionalidades existentes na sociedade brasileira, destacou a responsabilidade do Ministério Público e do todo o sistema de Justiça no combate ao racismo e compartilhou vivências. Edital para a seleção das 15 pessoas negras que receberão bolsas integrais em curso preparatório para ingresso na carreira de promotor de Justiça será publicado no início de dezembro
Com o objetivo de promover a equidade racial dentro da instituição, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) lançou, nesta terça-feira, 26 de novembro, no Salão Vermelho da Procuradoria-Geral de Justiça, em Belo Horizonte, o Projeto Tenório.
A iniciativa prevê a concessão, para pessoas negras, de 15 bolsas integrais em curso preparatório para ingresso na carreira de promotor de Justiça, além de 15 bolsas de auxílio financeiro e acompanhamento psicológico. A publicação do edital para seleção das 15 pessoas que serão contempladas com as bolsas está prevista para o dia 3 de dezembro. As aulas começarão em fevereiro.
Fruto do programa antirracista da instituição, o Sobre Tons, o Projeto Tenório é realizado em parceria com a Educafro Minas e a Fundação Escola Superior do Ministério Público de Minas Gerais. Conta com o apoio da Coordenadoria de Combate ao Racismo e Outras Formas de Discriminação (Ccrad), do Centro de Apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Educação (Caoeduc) e do Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (Caoma), e com financiamento da Plataforma Semente.
O nome escolhido é uma alusão e uma homenagem a Jorge Gonçalves Tenório, um dos poucos promotores negros da história do MPMG. Natural de Barbacena, Jorge Tenório ingressou na instituição em 1992 e atuou na Promotoria de Justiça de Três Marias, na região central do estado. Em 1997, aos 32 anos de idade, faleceu em um acidente automobilístico.
“Era um homem correto, simples, promotor de Justiça zeloso, um exemplo para todos nós. Eu sonhava em ter um Ministério Público composto por muitos Tenórios”, confidenciou ao público o ex procurador-geral de Justiça do MPMG Epaminondas Fulgêncio Neto, que estava à frente da instituição quando Jorge Gonçalves Tenório atuou como promotor de Justiça.
Ainda segundo Epaminondas, Tenório era “um homem dos Direitos Humanos e honrava as melhores tradições do Ministério Público”. O ex procurador-geral de Justiça observou, contudo, que as melhores tradições do MP não são as do dia a dia forense. “São essas que estamos vendo aqui hoje, do combate ao racismo e a toda discriminação, da defesa da educação, da Ouvidoria, que abre os canais para a sociedade, do nosso Centro de Estudos, que abre as portas também para o diálogo direto com o Ministério Público, e a do corregedor-geral da instituição, cuja função, muito mais do que punitiva, é uma missão pedagógica”, apontou.
Familiares
O evento de lançamento do projeto contou com a presença da viúva do promotor Jorge Gonçalves Tenório, Marlene Tenório, e do seu irmão Edson Gonçalves Tenório, que receberam uma placa de homenagem durante a solenidade.
O advogado Edson Tenório avaliou como “brilhante” o projeto do MPMG e a iniciativa de homenagear “o grande homem e grande jurista que foi o doutor Jorge Gonçalves Tenório”, ressaltou, ao se referir ao irmão.
Edson ainda defendeu a importância das ações afirmativas para a conquista da igualdade racial. “Não basta o discurso. Agora, sim, o Ministério Público lança uma ação muito importante que vai valorizar e incentivar um público específico, historicamente excluído, porque não tem as mesmas oportunidades, mas que merece toda a proteção do Estado. É um projeto que vai acabar incentivando os demais Ministérios Públicos no Brasil”, comemorou.
O advogado também elogiou a “reverência” com que o evento foi realizado e a “elegância” na recepção dos familiares do homenageado. "A família fica muito honrada com essa iniciativa e espera que o Ministério Público continue sempre altivo em suas ações”, declarou.
Sobre Tons
O coordenador da Ccrad, promotor de Justiça Allender Barreto, lembrou que o Projeto Tenório é fruto de um contexto maior, o programa Sobre Tons, lançado pelo MPMG em março de 2023, inicialmente com o objetivo de promover o letramento dos integrantes da instituição sobre as pautas raciais. “Além de ele ser um marco histórico da nossa instituição, ele é o maior movimento institucionalizado de enfrentamento ao racismo do Ministério Público brasileiro”, avaliou.
Allender lembrou também que, em 2024, o Sobre Tons ultrapassou as paredes do MP e chegou aos estádios de futebol, a universidades e a salas de cinema, através de parcerias interinstitucionais. E que, agora, o lançamento do Projeto Tenório brinda o fechamento do ano. “Entendemos que para além do importante discurso antirracista, é preciso ação, movimento e a mobilização das instituições com recursos para reparar um déficit histórico”, salientou.
O corregedor-geral do MPMG, procurador de Justiça Marco Antônio Lopes de Almeida, lembrou que a luta pela igualdade racial é um dos temas mais cruciais da sociedade contemporânea e defendeu a importância das ações afirmativas para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. “Apesar dos avanços que conquistamos como sociedade, a desigualdade racial continua sendo um obstáculo que impede que as pessoas negras tenham acesso às mesmas oportunidades e direitos. As medidas afirmativas surgem como instrumentos fundamentais para a promoção da justiça social”, avaliou.
Ainda de acordo com o procurador, essas ações não são um favor ou privilégio para parte da população, "mas um passo necessário para corrigir distorções históricas e garantir que todas as pessoas, independentemente da cor da sua pele, possam usufruir das mesmas oportunidades”, pontuou.
Potência
Na avaliação da coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Educação (Caoeduc), promotora de Justiça Ana Carolina Zambom, o projeto Tenório é “de longe, o projeto mais potente” que ela já viu ser desenvolvido no MPMG. “É um marco no Ministério Público mineiro e espero que se torne um marco também no Ministério Público brasileiro, porque ele precisa ser replicado. O racismo existe, e as leis do nosso ordenamento jurídico não têm sido capazes, sozinhas, de quebrar essa condição histórica. É uma honra vivenciar o que está acontecendo aqui hoje”, expôs.
Representando a Educafro Minas, a advogada Ariane Cabral falou dos vários obstáculos enfrentados pela população negra para acessar as oportunidades de estudo e de emprego. “Muitos dos nossos já sentiram medo, de não ter o que comer, de não ser aprovado em uma entrevista de emprego, de não ter como pagar uma conta de água ou de luz. Medo de não ser aprovado no concurso público. Hoje estamos aqui e vou seguir resoluta, vigilante para que esse projeto possa continuar e para que outras pessoas, assim como eu, tenham oportunidade de estar aqui, mas como membra e membro do Ministério Público”.
Também compuseram a mesa de abertura do evento a ouvidora do MPMG, Nádia Estela Ferreira, e a diretora do Ceaf, procuradora de Justiça Élida de Freitas. Na mesa referente ao Projeto Tenório, também estiveram presentes Fernanda de Paula Silva, representando a Fundação Escola do MPMG; Renata Fonseca Guimarães, representando a Plataforma Semente; e Geisa Pastor, representando o Observatório de Comunicação Ambiental (Lei.A).
Enfrentamento ao racismo
A atriz, cantora, escritora e poetisa Elisa Lucinda participou do evento com a palestra “O antirracismo de cada dia: o trabalho de formação e consolidação de uma cultura de enfrentamento ao racismo”. A mesa foi presidida pela promotora de Justiça Mariana Michieletto da Silva e teve, como debatedora, a professora e pesquisadora Yone Maria Gonzaga.
Antes de dar a palavra à palestrante, Mariana Michieletto emocionou a plateia, ao compartilhar um vídeo pessoal do dia em que revelou ao pai, negro retinto, que ele teria uma filha promotora de Justiça. "A hora que meu pai parou de chorar, e essa foi a primeira vez que vi meu pai chorando, ele falou a seguinte frase: 'quem diria que o pretinho, filho do verdureiro, teria uma filha promotora de Justiça?".
Segundo Mariana, na sequência, o pai compartilhou com ela todas as situações de racismo que sofreu desde pequeno.
Elisa Lucinda iniciou a palestra cantando a canção “Muito romântica”, de Caetano Veloso. Em seguida, falou da importância do canto e de outras expressões corporais para os povos africanos e indígenas, destacando a falta que os fundamentos dessas culturas fazem para a sociedade atual. “Quando eu canto, principalmente em locais formalistas como este, a minha ideia é que novas sinapses são produzidas, que a emoção é incluída no jogo. Deixa de ficar uma coisa muito racional, muito fria, para a gente poder aquecer a discussão”, explicou.
A palestrante foi categórica sobre o papel dos órgãos do sistema de Justiça no combate ao racismo, reforçando que eles não podem comportar pessoas que não são antirracistas. “Quem não é tem que repensar a carreira. Não há como falar de justiça no Brasil sem fazer o recorte racial. O conceito de mérito é sórdido, é sádico. Como é que você vai falar de mérito com um menino de 14 anos que mora na comunidade do Tanque (no Rio de Janeiro), que tem que parar o ensino médio para sustentar os irmãos? Enquanto o menino de 14 anos que mora na Savassi está escolhendo se vai fazer intercâmbio na Irlanda. É uma distância abismal. E as pessoas vêm falar de mérito? Com raias tão diferentes? Pistas tão díspares? É um cinismo, um escárnio”, criticou.
A palestrante frisou que o Brasil convive com inúmeras inconstitucionalidades, que atingem, predominantemente, a população negra. “Eu pergunto a vocês: qual é o recado da fiança para o homem pobre? Bem-feito! Se fosse rico, estaria respondendo tudo em liberdade. É impressionante. Com todas as provas, é difícil colocar um branco rico na cadeia. E prova nenhuma bota o preto na cadeia. É uma loucura da sociedade e que sai caro para todo mundo”, analisou.
Para a artista, na luta pela equidade racial, a atuação das pessoas brancas é fundamental. “Precisamos de aliados! E aliados brancos. Eu digo isso porque muitas coisas estão na mesa dos brancos. E quando não tem um preto lá, tem que ter um branco que diga: ‘gente, não tem nenhum preto aqui’. Tem que ter um branco que diga: ‘está pegando mal para a empresa. Não vai dar certo isso não, hein?’. Ameaçando que está perdendo dinheiro. Tem que ter um branco sensível que entenda que enquanto ele mora com segurança na área nobre, tem alguém sendo perseguido e torturado na área pobre e esse alguém é que se volta contra ele. A desigualdade produz injustiças todos os dias”, apontou.
Ainda segundo Elisa Lucinda, para promover a justiça no país, é necessário que as pessoas reflitam sobre suas próprias contradições. “A gente fica querendo paz, igualdade, mas produzindo sistematicamente a desigualdade. É preciso que a gente coloque um espelho na gente, um espelho profundo. Para vermos o quanto tem de incoerência em cada um de nós. Se fico discutindo sobre esses temas, mas em casa não pago a hora extra da minha funcionária, agrido a minha mulher... A gente vai ter que olhar para isso. Não é fácil. Mas é muito importante”, orientou.
O evento contou, ainda, com apresentações artísticas da cantora e contadora de histórias Luiza da Iola e da cantora e compositora Nath Rodrigues. A mestre de cerimônias foi a jornalista Sandrinha Flávia.
Assista:
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Ministério Público de Minas Gerais
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