Notícias - Direitos HumanosEvento de conclusão da primeira etapa do programa Sobre Tons destaca necessidade de ações institucionais contínuas de combate ao racismo
Jornalista Márcia Maria Cruz lembrou que, por mais de 100 anos, após a abolição da escravatura, predominou no Brasil a ideia da democracia racial. Contudo, realidade é diferente. “Formalmente, não temos mais a tortura física ao negro escravizado, mas impõe-se a violência ao cidadão negro pela repressão social”. Debate contou com participação da presidente do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira, Makota Celinha, e do zelador da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, Pai Ricardo.
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) promoveu na tarde de sexta-feira, 24 de novembro, no Auditório Vermelho da Procuradoria-Geral de Justiça, em Belo Horizonte, o evento de conclusão da primeira etapa do Sobre Tons, o programa antirracista da instituição, lançado em 21 de março.
Produzido pela Assessoria de Comunicação Integrada (Asscom) do MPMG, a partir de proposta apresentada pelo Grupo de Trabalho (GT) Antirracismo da instituição e pela Coordenadoria de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação (CCRAD) à Procuradoria-Geral de Justiça, o programa trouxe, quinzenalmente, de março a novembro, conteúdos e ações educativas sobre questões raciais.
A primeira etapa da iniciativa teve como foco a sensibilização do público interno da instituição para a problemática do racismo, especialmente dentro do Ministério Público. Foram abordados 18 subtemas: importância de se falar sobre o racismo, racismo e violação dos direitos humanos, compromisso do MP com o antirracismo, racismo e participação democrática, racismo estrutural, racismo religioso, teste do pescoço, racismo algorítmico, cotas raciais, interseccionalidade, epistemicídio, racismo institucional, racismo recreativo, racismo reverso, racismo linguístico, colorismo, branquitude e educação antirracista.
O evento de conclusão da primeira fase do programa contou com palestra da jornalista Márcia Maria Cruz sobre racismo estrutural. Como debatedores, participaram a presidente do Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-brasileira, Makota Celinha, e o zelador da Casa de Caridade Pai Jacob do Oriente, situada na Vila Senhor dos Passos, em Belo Horizonte, Pai Ricardo. A mesa foi presidida pelo promotor de Justiça do Grupo de Trabalho Antirracista do MPMG Evandro Ventura da Silva.
Márcia Cruz apresentou reflexões sobre o conceito de racismo estrutural, comparando estudos do filósofo e atual ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania do Brasil, Sílvio Almeida, e do sociólogo Muniz Sodré. Ela iniciou sua fala destacando a importância de se nomear os fenômenos sociais e de se prestar atenção na presença do racismo em falas e atitudes naturalizadas. “Frases como ‘somos todos humanos’, ‘eu não enxergo cor’, ‘na minha casa, todos comem na mesma mesa’ são racistas e, muitas vezes, não nos damos conta disso”, apontou.
Segundo a jornalista, pesquisa publicada recentemente revelou que 81% dos brasileiros concordam que o Brasil é um país racista. No entanto, apenas 11% reconhecem que apresentam práticas e comportamentos racistas. “Então, nos perguntamos: ‘onde estão as pessoas racistas?’. Isso se explica muito pela ideia de que o racismo é algo individual, resultado apenas de atitudes discriminatórias individuais”.
Contudo, lembrando Silvio Almeida, a palestrante afirmou que, para compreender a dimensão do racismo, é preciso ir além da questão individual. “O racismo não é só algo que é feito por uma pessoa porque ela é má. Ele está na base da sociedade brasileira, em todos os nossos sistemas e instâncias de poder. Ele atravessa todas as instituições. Está nas famílias, no Estado, de forma geral, nas igrejas”.
De acordo com Márcia, o sociólogo Muniz Sodré questiona a ideia do “racismo estrutural”, trazendo outro conceito, o do “racismo de dominação”. “Segundo Sodré, com a abolição da escravatura, não temos mais leis que separam o negro do branco. Porém, as elites querem, de alguma maneira, fazer perdurar essa relação de dominação e, assim, criam estratégias para que o racismo permaneça, de forma maquiada. Há, então, uma mudança do racismo de segregação para o racismo de dominação”, explica.
Ainda de acordo com a jornalista, por mais de 100 anos, após a abolição da escravatura, predominou no Brasil o mito democracia racial. No entanto, a realidade é bem diferente do que se fazia acreditar. “Formalmente, não temos mais a tortura física ao negro escravizado, mas impõe-se a violência ao cidadão negro pela repressão social”, exemplificou.
A palestrante citou também como uma forma social escravista pós-abolição as ações de invisibilidade da cultura africana e do que ela pode trazer para vermos o mundo de outra forma. “Há uma hierarquização dos saberes. Tudo o que vem das tradições dos países africanos é tratado como inferior. As práticas são colocadas como feitiçaria. A capoeira é tratada como vadiagem e criminalizada. Criam-se formas de desconstruir e impregnar percepções sobre as pessoas negras”, analisou.
Segundo a palestrante, o “racismo da forma” opera de uma maneira em que as pessoas não percebem atuar de forma a garantir o racismo de dominação.
Debate
A debatedora Makota Celinha frisou que a desigualdade racial no Brasil é um obstáculo à democracia. “O racismo nos mata de diversas formas. Ele elimina a nossa subjetividade e tenta tirar a nossa humanidade. Para mim, o Brasil nunca foi democrático, porque é um país racista. E não há democracia onde há racismo. Em quem eu posso confiar? Em quem eu posso esperar? A solidariedade não assegura as nossas vidas”, alertou.
Ainda segundo ela, o racismo está na constituição das instituições públicas "O Estado brasileiro alimenta o racismo. Eu quero discutir poder. Se o poder é bom para uns, por que não pode ser para os pretos e para as pretas? É preciso entender que os corpos pretos fazem parte da composição social e que o racismo é um problema dos brancos”.
Pai Ricardo lembrou, por sua vez, que 80% dos moradores de rua são negros e criticou que isso não seja alvo de discussão. “Na Casa Pai Jacob, atendemos 148 famílias. Considerando que existem mais de 3 mil terreiros em Belo Horizonte, quantos problemas estamos assumindo no lugar do Estado? Temos que discutir o racismo na concretude das coisas”, reivindicou.
O debatedor ainda destacou a importância de o Ministério Público estar presente no dia a dia das comunidades e sugeriu medidas para isso. “É preciso que o MP crie bases nas comunidades, nos centros culturais, por exemplo. Vamos transformar em ações o que estamos discutindo aqui. Precisamos de investimento para as pessoas desaprenderem o racismo".
Presidente da mesa, o promotor de Justiça Evandro Ventura confidenciou que só começou a se entender negro quando buscou sair do bairro periférico onde nasceu, em Governador Valadares. “Não existia mais meu amigo preto do meu lado, como na minha comunidade. Só tinha branco. Eu era o único negro na minha turma de promotores. Na época, ainda não tínhamos a lei das cotas”, recordou.
Evandro ainda levantou questionamentos sobre a representatividade da população negra nos cargos de poder. “Quantos promotores de justiça e juízes conhecem uma comunidade, um bairro pobre de periferia? Pergunto: como é que você vai fazer acusações contra pessoas das quais você não conhece a realidade? Quantos procuradores e desembargadores negros temos em Minas Gerais?”.
Novos horizontes
O coordenador da CCRAD, promotor de Justiça Allender Barreto, ressaltou que o programa Sobre Tons “abre uma trincheira de enfrentamento ao racismo no MPMG”. Lembrou, ainda, que é um dever constitucional da instituição combater o problema. "O processo democrático brasileiro desafia o MP a enfrentar o racismo sob pena de estar alheio ao processo histórico. Quando movimentamos o sistema, abrimos fissuras. Abrimos frestas e horizontes de sentido”.
O procurador-geral de Justiça, Jarbas Soares Júnior, salientou a importância da diversidade e da representatividade e renovou seu compromisso, enquanto estiver à frente do MPMG, com o enfrentamento a toda violação aos direitos fundamentais. “O combate à discriminação é um dever de todos nós, independentemente da raça, do gênero, da classe social. Precisamos resistir e superar, precisamos de pessoas que fiquem indignadas e que trabalhem dentro do mundo real. É preciso ter coragem para confrontar”.
Resistências
Integrante do GT Antirracismo da instituição, o promotor de Justiça Caio César Espírito Santo do Nascimento observou que, como já era esperado, o programa Sobre Tons provoca resistências. Mas também lembrou que toda transformação é lenta. “O propósito do programa foi nos capacitar para melhor desempenharmos nosso dever constitucional. Não falar sobre o racismo é, em si, uma atitude reprodutora do racismo”, pontuou.
O promotor ainda disse que espera, no futuro, concordar com as pessoas que resistem ao enfrentamento ao racismo e alegam que não há sentido para distinguir negros e brancos, já que são biologicamente iguais. “Mas para que esse momento possa ser alcançado, a estratégia da racialização, com a visibilização da negritude e da branquitude, é a estratégia possível para desnudar o racismo estrutural institucional. A raça foi afirmada por muito tempo para desigualar. Agora deve ser afirmada em nome da igualdade”.
Representando o coletivo “Elas pelo MPMG”, a promotora de Justiça Maria Constância Martins da Costa Alvim elogiou a iniciativa do Sobre Tons e observou que, quando entrou no MP, achava impensável a ideia de fazer um Ministério Público diverso e plural. “Estamos nos colocando junto com a PGJ. A gente aprende a ser racista, então precisamos aprender a deixar de ser. É preciso coragem para mexer com essas estruturas. Estamos aqui abraçando essa coragem”.
A solenidade reuniu promotores e procuradores de Justiça, servidores, colaboradores e estagiários do MPMG, integrantes do Grupo de Trabalho Antirracismo da instituição, representantes de movimentos negros, dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, das Polícias Civil e Militar, do Corpo de Bombeiros, dirigentes de órgãos públicos, institutos e fundações, representantes de organizações da sociedade civil e da imprensa.
Compuseram a mesa de honra da cerimônia: o procurador-geral de Justiça, Jarbas Soares Júnior; o corregedor-geral do MPMG, Mário Drumond da Rocha; a ouvidora do MPMG, Nádia Estela Ferreira Mateus; o subsecretário de Direitos Humanos, Duílio Campos; a deputada estadual Macaé Evaristo; o coordenador da CCRAD, promotor de Justiça Allender Barreto; o promotor de Justiça do Grupo de Trabalho Antirracista do MPMG Caio César Espírito Santo do Nascimento; a promotora de Justiça Maria Constância Martins da Costa Alvim, representante do coletivo “Elas pelo MPMG”; e a presidente do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais, Marília Palhares Machado.
O evento contou com o apoio da Plataforma Semente, da Associação Mineira do Ministério Público e do Sindicato dos Servidores do Ministério Público do Estado de Minas Gerais. Na abertura, houve apresentação da poetisa Júlia Elisa e, no encerramento, do Duancestral Harpa e Pandeiro, formado pelas artistas Manu Ranillla e Nalu Pimenta.
Assista ao evento:
O Sobre Tons
O programa Sobre Tons nasceu no âmbito do GT Antirracista do MPMG, formado por promotoras e promotores de Justiça, servidores e colaboradores da instituição, da capital e do interior, em agosto de 2021, com o objetivo de debater e propor estratégias institucionais de enfrentamento ao racismo.
Além dos conteúdos informativos divulgados internamente sobre o tema, o Sobre Tons promoveu uma ação cultural em julho. Entre os prédios do MPMG, foi criado um espaço de conversa e de aprendizado sobre igualdade racial, com participação da primeira mestra de capoeira angola de Minas Gerais, Alcione Oliveira, do Grupo Candeia de Capoeira Angola e do grupo de samba rural Samba d'Ouro.
Veja mais fotos do evento de conclusão da primeira etada do Sobre Tons:
Fotos: Camila Soares/MPMG