Notícias - Artigo de OpiniãoA quem interessa proteger o patrimônio cultural?
Artigo originalmente publicado no jornal Estado de Minas, no dia 10 de fevereiro de 2025
Marcelo Azevedo Maffra - promotor de Justiça e coordenador Estadual das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural (CPPC)
Os bens culturais fazem parte do cotidiano de todos nós. Estamos falando de edifícios centenários, obras de arte, documentos históricos, paisagens, museus, igrejas barrocas, além das formas de expressão, manifestações artísticas e modos de fazer e viver das comunidades tradicionais. Esses bens nos conectam diretamente com nossas raízes e nos convidam a refletir sobre de onde viemos, onde estamos e para onde vamos. Eles despertam um sentimento de pertencimento, nos lembram que somos parte de uma coletividade e refletem nossa identidade social.
Em um país culturalmente rico como o nosso, o que define a singularidade de cada região? Sotaques, culinária, crenças, artes, história e outros elementos marcam nossas diferenças culturais. Esse patrimônio expressa os valores mais importantes da nossa sociedade e, por isso, precisa ser preservado para as presentes e futuras gerações. É um direito de todos, inclusive daqueles que ainda vão nascer, ter acesso e desfrutar dessas referências históricas e identitárias do nosso povo.
A Constituição Federal de 1988 estabelece que a proteção do patrimônio cultural é um dever compartilhado entre a sociedade e o poder público. A responsabilidade estatal é comum à União, aos estados, aos municípios e ao Distrito Federal, que devem atuar de forma colaborativa, sem monopólio ou subordinação, para impedir a perda e a destruição desses bens. Nesse condomínio de atribuições, nenhum órgão público detém primazia sobre o outro, pois as responsabilidades são compartilhadas e não excludentes.
A distribuição equânime das funções relacionadas à tutela do patrimônio é uma decorrência lógica do federalismo cooperativo, idealizado para permitir a efetiva descentralização do poder, assegurando autonomia dos estados e municípios na solução dos problemas regionais e locais. Em um país com dimensões continentais como o Brasil, a descentralização é um importante reforço à democracia participativa, pois permite que as pessoas estejam mais próximas dos locais onde são tomadas as decisões políticas, favorecendo o exercício da cidadania e intensificando a sensação de pertencimento social.
A mesma cooperação imposta aos entes federativos é exigida dos poderes da República – Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público – que devem trabalhar juntos para garantir a preservação dos bens culturais. Nesse contexto, o Ministério Público, como defensor dos direitos difusos e coletivos, desempenha um papel essencial na proteção do patrimônio cultural. Além de ser titular da ação penal, o MP tem competência para investigar, processar e firmar acordos que ajustem condutas lesivas ou que coloquem em risco bens culturais.
O Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) foi pioneiro ao criar, em 2003, a Coordenadoria das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC). Desde então, a CPPC tem se destacado nacionalmente na defesa do patrimônio, especialmente no resgate de bens culturais desaparecidos.
Minas Gerais registra, ao longo de sua história, episódios recorrentes de furtos em museus, em arquivos públicos e em igrejas barrocas. Embora não existam estatísticas oficiais abrangentes, veículos de imprensa noticiaram que, em 1994, ocorreram pelo menos 92 subtrações de peças sacras e documentos históricos no estado, sendo que, em 2003, foram registrados outros 80 casos. Os números reais certamente são muito superiores aos divulgados, tendo em vista que a imensa maioria dos delitos sequer chega ao conhecimento das autoridades.
Para tentar mudar essa realidade, em 2021, o MPMG lançou o SONDAR, o maior banco de dados do país sobre bens culturais desaparecidos. Essa plataforma digital permite que a sociedade participe ativamente na vigilância, identificação e recuperação do patrimônio perdido em Minas Gerais. A implementação do SONDAR refletiu uma mudança paradigmática na tutela cultural, com a superação do modelo anterior, demasiadamente centralizado e tecnocrático, para uma estratégia que passou a valorizar a participação social.
Com efeito, nos últimos quatro anos, com o apoio da população, dezenas de bens foram localizados e devolvidos aos seus locais de origem. Documentos históricos retornaram para os arquivos públicos, obras de arte para os museus e peças sacras para as igrejas mineiras. A partir de resultados tão expressivos, fica a lição: a sociedade sempre será a melhor guardiã do seu patrimônio.
Convido você, leitor, a conhecer o SONDAR no site www.sondar.mpmg.mp.br e a participar dessa rede de proteção do nosso patrimônio. Afinal, proteger o patrimônio cultural é um dever de todos – e um legado para o futuro.