Campanhas Proteção da mulher em situação de violência e humanização do atendimento
Em 7 de agosto de 2006, foi sancionada no Brasil uma das normas mais importantes do país, a Lei 11.340/06, que passou a ser chamada Lei Maria da Penha (LMP) em homenagem à mulher cujo marido tentou matá-la duas vezes e que, desde então, se dedica à causa do combate à violência contra as mulheres.
Reconhecida pela Organização das Nações Unidas como uma das legislações mais avançadas do mundo, a norma é referência por ter estabelecido vários mecanismos de proteção à mulher e ainda por, ao longo desses 17 anos, vir inspirando mudanças no sistema de Justiça, por conta dos novos paradigmas trazidos, especialmente, de humanização do atendimento.
De acordo com a coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar (CAOVD) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), promotora de Justiça Patrícia Habkouk, ao reconhecer a complexidade da violência doméstica e os traumas gerados nas vítimas, a Lei Maria da Penha e leis posteriores relacionadas ao tema passaram a exigir dos profissionais do sistema de Justiça mais qualificação no atendimento prestado.
Para ela, a humanização do olhar sobre a questão é “irreversível” e seus efeitos repercutem em todas as áreas do Direito. “Entender a dor que a violência doméstica causa e acolher os traumas das mulheres é a principal diretriz da Lei Maria da Penha. Isso, sem dúvida, gera profissionais mais sensíveis e preparados para lidar com as questões humanas em todos os campos”, aponta.
A promotora ressalta, ainda, que os promotores e demais profissionais da área de violência doméstica devem buscar compreender as especificidades das agressões sofridas pelas mulheres, levando sempre em conta que as respostas apresentadas em relação aos abusos que vivenciam não são iguais. “Cada caso é um caso. É preciso acolher e respeitar o tempo de cada uma. Às vezes uma mulher que sofreu uma violência menos grave leva mais tempo para superar a situação do que outra que suportou uma violência mais grave”, observa.
No mesmo sentido, a promotora de Justiça Luciana Teixeira Guimaraes Christófaro, da 1ª Promotoria de Justiça de Diamantina, recorda que antes do surgimento da Lei Maria da Penha as mulheres em situação de violência doméstica não recebiam atenção por parte do sistema de Justiça. “A LMP trouxe humanização. Antes não se falava das vítimas, hoje fala-se muito. Somos a voz das vítimas. A lei trouxe essa possibilidade de agirmos dessa forma, dando a elas todo o apoio necessário”.
Para Luciana, essa humanização tem sido fundamental ao combate à violência doméstica e à proteção das mulheres, sobretudo por conta da vulnerabilidade apresentada pelas mulheres em situação de violência. Ela recorda que, certa vez, recebeu uma delas na Promotoria e, ao abraçá-la, a mulher começou a chorar copiosamente. “Era uma mulher muito vulnerável. Ela disse que aquele abraço era tudo o que ela precisava naquele momento”.
Na avaliação de Luciana, a aproximação dos promotores com as vítimas, propiciada pela Lei Maria da Penha, tem sido fundamental à efetividade da atuação do Ministério Público.
Mecanismos de proteção
Nesses 17 anos de vigência, os mecanismos de proteção previstos pela Lei Maria da Penha, entre elas, as medidas protetivas de urgência, têm salvado a vida de inúmeras mulheres no país. A promotora de Justiça Luísa Carla Vilaça Gonçalves Guimaraes, da Promotoria de Justiça do Serro, destaca que ser possível mudar radicalmente a vida das mulheres para melhor.
Ela recorda o caso de uma denúncia anônima que chegou à Ouvidoria do MPMG, quando atuava na Promotoria de Justiça de Diamantina, narrando sobre uma mulher, casada com um policial militar, que estava sendo vítima de violência doméstica e mantida praticamente em cárcere privado. Por medo, ela não conseguia denunciar o marido.
A fim de conseguir que a mulher fosse à Promotoria sem impedimento do companheiro, a promotora a notificou para depor sobre outro caso. “Em um primeiro momento, ela estava arredia. Eu tentei criar um espaço acolhedor para que ficássemos só nós duas. Depois de um tempo de conversa, essa mulher começou a chorar muito e contou situações horríveis pelas quais passava na relação, de violências psicológicas e físicas”, lembra.
A vítima já saiu da Promotoria com o pedido de medida protetiva, que, imediatamente, foi concedido pela juíza. “Essa mulher foi morar com a mãe, passou a fazer acompanhamento psicológico e nos agradeceu muito por toda a mudança que a medida protetiva gerou na vida dela”, conta Luísa.
Para a promotora, o caso é emblemático por ter como agressor um profissional das forças de segurança. “Essa mulher achava que nunca conseguiria romper a relação, mas felizmente, graças à proteção garantida pela Lei Maria da Penha, conseguiu”.
Outro caso narrado pela promotora é o de uma idosa de mais de 70 anos, mãe de três filhos, que semanalmente comparecia à Promotoria para relatar agressões que sofria por parte do marido. Nas audiências, pedia medida protetiva, mas depois solicitava a revogação. “Ela dizia que o marido era ótimo para ela e para os filhos. Só não era quando bebia. O problema é que ele bebia todos os dias”, recorda a promotora.
Segundo Luísa, a Promotoria de Justiça solicitou à Justiça a concessão de medida protetiva que consistia na imposição de participação do agressor em cursos e palestras para tratar o vício no álcool. O homem aceitou e, desde então, nenhuma outra situação de violência foi relatada pela vítima.
A promotora salienta que é papel do Ministério Público acolher a vítima e mantê-la informada sobre todo o procedimento judicial, não só no âmbito da violência doméstica, mas no processo penal como um todo.
Machismo estrutural
Promotor de Justiça em Pompéu, Guilherme Ferreira Hack ressalta que a aplicação da Lei Maria da Penha é cotidiana, em razão do machismo que estrutura a sociedade brasileira e que coloca as mulheres em situação de vulnerabilidade. “Infelizmente, em todas as comarcas pelas quais passei, sempre surgiam casos de lesão e até de feminicídio. A efetividade da Lei Maria da Penha, nesse contexto, é evidente e serve para um combate adequado a essa violência de gênero”, pontua.
Guilherme observa que são muitos os casos de perseguição da vítima pelo agressor. Em um dos que ele atuou, a mulher tinha se separado do marido e o homem não aceitava o fim do relacionamento, perseguindo-a de diferentes formas. "Ele ia armado ao trabalho dela, mandava mensagem de número anônimo e fazia chamadas de diferentes números. Conseguimos a prisão preventiva desse homem pela prática dos crimes de perseguição majorada pela violência doméstica e de descumprimento de medida protetiva de urgência e o denunciamos por delitos que, juntos, totalizavam cerca de 15 anos de prisão”, conta.
De acordo com o promotor, a culpabilização das vítimas e a não valorização da palavra delas são traços do machismo que ainda permeiam a Justiça e dificultam a aplicação da lei em muitos casos. Muitas vezes, segundo ele, as vítimas não são protegidas por conta de exigências descabidas feitas por alguns juízes. “Um exemplo são os casos de vazamento de imagens íntimas da mulher por parte do agressor, por vingança ou ciúmes, em que o juiz pede que a vítima demonstre que houve relação íntima com o agente para conceder a medida protetiva. Isso é muito preocupante, porque, quando a autoridade judiciária indefere o pedido de proteção, quer dizer que deveria haver uma produção de prova. Porém, as medidas protetivas têm natureza cautelar”, explica.
Conforme Guilherme, apesar de todos os avanços obtidos desde a promulgação da Lei Maria da Penha, a estigmatização das mulheres e a responsabilização das vítimas pela violência sofrida ainda é uma realidade no país.
Pelo fato de a violência de gênero envolver aspectos culturais, o promotor ressalta a importância de se combater o problema também com ações preventivas, voltadas à conscientização de toda a população sobre os direitos da mulher, sobre os deveres dos homens e sobre a necessidade de igualdade material entre os gêneros. Esse é um caminho inafastável, segundo ele, para se obter a proteção efetiva das mulheres.
Os números da violência e a necessidade de atuação integrada
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou, no mês passado, os dados sobre a violência no Brasil e constatou que todos os indicadores de violência doméstica subiram em 2022. Houve aumento de 2,9% das agressões, totalizando 245.713 casos, o que significa 28 mulheres agredidas por hora. O aumento dos crimes de ameaça foi de 7,2%, totalizando 613.529 casos. Os crimes de perseguição ameaçadora, conhecidos por stalking, registraram 147 vítimas por dia, e o de violência psicológica, 66 a cada dia.
Houve aumento também dos casos de feminicídio consumado, com o total de 1.437 vítimas, enquanto o aumento dos casos de feminicídio tentado foi de 16,9%. O relatório apresentado destacou que no Brasil foi registrado o maior número de estupros da história, com cerca de 75 mil vítimas. Em sua grande maioria, as vítimas são do sexo feminino e, predominantemente, crianças.
Em Minas Gerais, houve cerca de 145 mil registros de ocorrências envolvendo violência doméstica, e somados os feminicídios tentados e consumados ocorridos em 2022, verificou-se o total de 365 registros. Isso significa que, considerando a realidade do último ano, todos os dias uma mulher sofre um atentado à sua vida, que pode significar sua morte.
Ações articuladas
Para a coordenadora do CAOVD, Patricia Habkouk, outro ponto importante da Lei Maria da Penha é a previsão no sentido de que a política pública deve ser articulada entre a União, os estados e os municípios, contando, também, com a sociedade civil e com entidades não governamentais. “Somente a atuação integrada poderá contribuir para a mudança do cenário. Ao sofrer violência doméstica, a mulher tem sua vida desestruturada e, para superar o momento vivido, precisa receber apoio em vários segmentos”, observa.
Patrícia destaca que muitas mulheres não podem voltar para a própria moradia e, com isso, precisam das políticas públicas assistências, como aluguel social, transferência de renda e auxílios emergenciais. “Na saúde, necessitam de acompanhamento psicológico e de reabilitação, nos casos de violências físicas graves. No campo da educação, precisam mudar os filhos de creche, de escola e mesmo transferir a matrícula deles. Na segurança pública, precisam, em muitos casos, do apoio da Patrulha de Prevenção a Violência Doméstica. E do sistema de justiça, precisam de acompanhamento próximo do cumprimento da medida protetiva”, elenca.
Conforme a promotora, nos últimos anos, Minas Gerais tem avançado no combate à violência doméstica, com a visão de que este complexo fenômeno necessita de respostas integrais. “Temos articulado os serviços em rede. Cidades como Montes Claros, Porteirinha, Teófilo Otoni, Poços de Caldas, Contagem, Santa Luzia, Alfenas, Governador Valadares, entre outras, têm realizado um trabalho muito significativo.”
Patrícia destaca as dificuldades de se trabalhar no eixo preventivo, como prevê a Lei Maria da Penha, em um estado como Minas Gerais, que possui desafios específicos, especialmente, diante dos números da violência. Ainda assegura que o Ministério Público “tem atuado continuamente para mudar o triste cenário da violência doméstica no estado, cumprindo o relevante papel que lhe foi atribuído pela Constituição Federal e pela Lei Maria da Penha”.