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Em Minas Gerais, a quantidade de mulheres assassinadas e a crueldade com que tem se dado grande parte dessas mortes vêm impressionando cada vez mais promotores de Justiça e juízes que atuam na área. Toda semana, casos bárbaros de feminicídio são levados a julgamento nos Tribunais do Júri em todo o estado. Em Belo Horizonte, por exemplo, durante a quarentena, os jurados condenaram um homem que, para se vingar da companheira, quase decapitou a enteada de 19 anos no almoço do dia das mães, na frente da mulher e dos filhos pequenos. O autor do crime contou que agiu contra a jovem porque sabia que seria preso e que precisava manter a mulher viva para cuidar dos filhos do casal.

Entre os muitos casos de feminicídios que têm chegado à Justiça mineira, há, ainda, os de mulheres que levaram mais de 20 facadas de seus ex-companheiros, de outras que tiveram seus corpos violentados sexualmente e guardados na geladeira de casa e o de uma mulher que teve o corpo cimentado na parede, para citar apenas alguns dos inúmeros exemplos aterrorizantes.

Com o objetivo de dar visibilidade a esses crimes, o estado de Minas Gerais transformou, há dois anos, o dia 23 de agosto no Dia Estadual de Combate ao Feminicídio. A data foi instituída pela Lei 23.144/2018 e escolhida em virtude do assassinato da servidora do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) Lilian Hermógenes da Silva, em Contagem, em 23 de agosto de 2016, a mando do ex-companheiro. O caso é emblemático, principalmente porque Lilian era servidora da Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher de Belo Horizonte.

Na percepção de promotores de Justiça e juízes da área criminal, a barbaridade no assassinato de mulheres é algo que se destaca. “São crimes geralmente caracterizados por uma imensa crueldade, nos quais, muitas vezes, os agentes utilizam instrumentos que têm dentro de casa, como faca e tesoura”, observa a promotora de Justiça Denise Guerzoni Coelho, da 7ª Promotoria de Justiça – Tribunal do Júri da capital.

O juiz sumariante do 1º Tribunal do Júri de Belo Horizonte, Marcelo Rodrigues Fioravante, que concentra, desde fevereiro, todos os feminicídios da capital, afirma que esses crimes, de modo geral, são marcados por uma agressividade incomum. “Há uma raiva incontida que é descarregada no corpo da mulher”.

O magistrado conta que, antes de conviver de perto com esse tipo de crime, acreditava que faltava uma ação mais repressiva do Estado, com o endurecimento da lei e a diminuição da sensação de impunidade na sociedade, para que os casos diminuíssem. No entanto, percebe hoje que a punição não basta para o enfrentamento do problema. “Precisamos do apoio de outras ciências, como da Antropologia e da Psicologia, para compreendermos a natureza desses crimes e enfrentarmos as causas”.

Segundo diagnóstico da Polícia Civil de Minas Gerais, em 2019, o estado registrou 142 feminicídios consumados e 236 tentados. Em 2018, foram 157 consumados e 284 tentados. Já este ano, de janeiro a julho, 77 mulheres perderam a vida em decorrência de violência doméstica e familiar. Em relação ao mesmo período do ano passado, o total de expedientes apartados de medidas protetivas aumentou 22%, saltando de 20.396 para 24.866.

Mortes evitáveis

A coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (CAO-VD) do MPMG, promotora de Justiça Patrícia Habkouk, lembra que, conforme a Lei 13.104/2015 – em vigor desde março de 2015 – , o feminicídio é caracterizado não apenas pela morte de mulher em decorrência de violência doméstica e familiar, mas também quando provocada por menosprezo ou discriminação da condição do sexo feminino.

Esta segunda situação, segundo ela, para ser identificada, exige dos policiais militares e civis e dos operadores do Direito uma compreensão específica sobre as questões de gênero. “Quando não há essa compreensão, temos o risco de que feminicídios sejam tratados como homicídios e de que os diagnósticos não revelem os números em sua integralidade”, alerta.

Patrícia recorda, ainda, que os feminicídios são mortes evitáveis e que o dia estadual de combate a estes crimes vem reforçar a importância dos esforços institucionais e sociais para impedi-los. “Em uma sociedade civilizada, todas as vidas importam. Mas quando a gente olha para a morte violenta das mulheres, vemos uma peculiaridade: a autoria é, quase sempre, de pessoas conhecidas. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 88,8% dos autores são companheiros ou ex-companheiros das vítimas. Logo, são crimes praticados por pessoas próximas e que podem ser evitados. Precisamos pensar o problema a partir dessa peculiaridade para construirmos uma sociedade menos violenta para meninas e mulheres”.

Em busca de diminuir a violência contra a população feminina no estado, o MPMG tem adotado uma série de ações, entre as quais destaca-se a criação do CAO-VD, em março de 2019. O órgão, que é responsável, entre outras atribuições, por dar o suporte técnico necessário aos promotores de Justiça que atuam na área, está empenhado na elaboração de uma diretriz ainda mais efetiva de atuação institucional nos casos de violência contra a mulher. Para isso, realiza, atualmente, um diagnóstico dos feminicídios registrados no estado desde 2016, a fim de identificar onde, como e porque as vítimas foram assassinadas. “Essas informações serão muito importantes para direcionar a atuação dos promotores, que não deve ser apenas judicial, mas também extrajudicial, preventiva e resolutiva”, pontua Patrícia.

O juiz Marcelo Fioravante chama a atenção, também, para a importância da atuação do Estado na fase posterior ao crime, junto aos filhos e familiares da vítima. “A prevenção e a repressão são aspectos fundamentais do enfrentamento aos feminicídios. Mas é preciso que o mesmo esforço seja empenhado na assistência à família dessa vítima, pois as consequências de um feminicídio se estendem para ela e trazem danos imensos”.

Machismo cotidiano

Na visão de Patrícia Habkouk e Denise Guerzoni, o feminicídio é a manifestação extrema da subjugação à qual as mulheres são cotidianamente submetidas na sociedade patriarcal. Patrícia lembra que, por muitos anos, a morte das mulheres foi tolerada e, por isso, a figura do feminicídio é, hoje, tão importante para a sociedade.

Denise, por sua vez, destaca que a violência doméstica é uma escalada, não um fato isolado. “Começa com uma ameaça, uma injúria e outras formas de opressão e humilhação, vulnerando a honra e a intimidade da mulher. Depois, avança para um tapa, um empurrão, um soco e, em muitos casos, infelizmente, desemboca no assassinato”.

A mentalidade machista – que se manifesta, sobretudo, pelo controle dos corpos femininos –, está, segundo as promotoras, tão arraigada na cultura brasileira, que constantemente é expressada também pelas próprias mulheres, sem que elas se deem conta disso. Uma mostra dessa realidade foi a situação vivenciada recentemente pela promotora de Justiça Luz Maria Romanelli, da 7ª Promotoria de Justiça de Poços de Caldas.

No dia 6 de agosto, Luz assumiu o desafio de realizar o primeiro júri em plataforma virtual do estado, em razão da pandemia de COVID-19. A promotora, que em 16 anos de atuação na área criminal já havia enfrentado diversas situações complexas, foi surpreendida com ataques virtuais machistas por parte de profissionais do Direito em decorrência do júri realizado. “Eu sabia que receberia críticas por ser o primeiro júri virtual e pelas discussões que envolvem a realização dessa modalidade de julgamento. No entanto, nunca imaginei que essas críticas seriam voltadas a mim como pessoa e como mulher”.

Muitos dos ataques realizados nas redes sociais direcionavam-se à aparência e à capacidade intelectual da promotora. Um deles, feito por uma advogada, teve como alvo o cabelo de Luz Maria, que, segundo a autora do post, não estava arrumado. “Esse do cabelo me chamou mais a atenção, porque eu me preparei muito para o júri e o que foi reparado foi o meu cabelo, não minha atuação. Que diferença faz como está o meu cabelo, se eu havia estudado o processo? Por que a mulher tem que se apresentar linda, de salto, maquiada, e isso não é cobrado dos homens?”.

A promotora contou, ainda, que, no dia a dia profissional, já ouviu, muitas vezes, por parte de homens, comentários com foco em sua aparência, como: “Nossa! Chegou para embelezar a reunião”. Segundo ela, são frases vistas por muitas pessoas como brincadeiras, mas que possuem grande carga pejorativa, por partirem de uma objetificação da mulher. “No início da carreira, eu não dava conta de rebater esses comentários, hoje dou. A gente se coloca e enfrenta”.

A postura combativa de Luz frente ao machismo e à criminalidade se faz presente também durante as audiências. Ela recorda que, certa vez, um réu, quando interrogado, buscando justificar seu comportamento, afirmou que a vítima gritava demais e argumentou com a frase: “Você sabe como mulher é, né?”. O advogado do homem riu do comentário e, imediatamente, a promotora o repreendeu: “Doutor, não acho que cabe rir disso, de um comentário machista. Estamos interrogando o agressor e não devemos rir dele”.

A representante do MPMG, que já atuou em inúmeros feminicídios, conta que ainda se assusta com o fato de a sociedade conservar características machistas e com a quantidade de defesas que, ainda hoje, buscam atacar a personalidade da vítima, tentando responsabilizá-la pelo crime. Segundo a promotora, em um dos júris que fez, o agressor matou a esposa, batendo, esfaqueando e queimando o corpo da vítima, porque, de acordo com ele, a mulher não teria usado um conjunto de calcinha e sutiã que deu a ela, e o agressor julgou que o uso das peças íntimas havia sido feito com outro homem.

A defesa do agente tentou provar que a mulher provocou o feminicídio em razão da suposta traição ao companheiro, levando ao plenário uma mulher, colega de trabalho do agressor, para dizer que o homem desconfiava que a companheira se relacionava com outro homem. Dos sete jurados responsáveis pelo julgamento, três acataram a tese. “Fiquei impressionada com o número de jurados que concordaram com a tese de homicídio privilegiado, com a diminuição da pena, por conta de uma suposta traição. Esse júri aconteceu no Dia Internacional da Mulher do ano passado. Foi bem marcante para mim”.

Em outro júri feito pela promotora, o agressor matou a esposa, que havia se separado dele, e a filha, e quando perguntado sobre o motivo, respondeu, paradoxalmente, que não conseguiria viver sem a companheira. “A mulher se separou, não quis mais ficar com ele. Esse inconformismo tem a ver com a honra masculina. Se a mulher busca direitos patrimoniais ou aparece com outra pessoa, a situação se agrava”.

Apesar do elevado número de feminicídios no estado e no país e dos inúmeros casos de violência doméstica, Luz Maria acredita que a sociedade já evoluiu muito na proteção da mulher e na conscientização sobre o tema. A impressão é compartilhada por Denise, que acredita haver um processo de transformação cultural em curso e que já percebe, entre os jurados de Belo Horizonte, o reflexo dessa mudança. “Há um esforço de conscientização das instituições, campanhas sociais de empoderamento das mulheres, estimulando essa transformação. E, em Belo Horizonte, sinto que os jurados estão acompanhando esse processo. Claro que ainda temos muito o que avançar, mas já estamos caminhando no sentido de compreender que o feminicídio é um crime intolerável, que não é legítimo matar por ciúmes, por uma suposta ou inexistente traição”.

Denise enfatiza, por fim, que a violência contra a mulher constitui uma das formas de violação aos direitos humanos.

 

 
 
 
 
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21/08/2020 

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