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Notícias - Direitos HumanosNo “Julho das Pretas”, Lívia Sant’Anna, Carla Akotirene e Joice Berth apontam caminhos para enfrentamento do racismo
Conforme palestrantes, representatividade importa, mas não basta. “Eu não quero ser a única negra em lugar nenhum. É cansativo e adoecedor. Temos uma justiça branca, masculina, que entende que racismo reverso existe. Precisamos de aliados e aliadas antirracistas para seguir abrindo caminhos, movimentando e fazendo com que o sistema cumpra o seu papel constitucional”, conclama promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia
“Uma mulher negra em um espaço com este, por si só, já traz um ensinamento”. Essa foi uma das primeiras frases proferidas pela promotora de Justiça do Ministério Público da Bahia Lívia Sant’Anna Vaz, nesta terça-feira, 30 de julho, no Salão Vermelho da Procuradoria-Geral de Justiça, em Belo Horizonte, durante o evento “Julho das Pretas”.
Parte das ações do Sobre Tons, o programa antirracista do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), a iniciativa reuniu também outras duas grandes escritoras e pesquisadoras brasileiras: a doutora em estudos feministas Carla Akotirene e a arquiteta urbanista e psicanalista Joice Berth.
Na oportunidade, a instituição celebrou, junto ao público, o 25 de Julho – Dia Internacional da Mulher Negra Afro Latina Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra – ampliando a discussão sobre o enfrentamento às discriminações de gênero e de raça.
Diante de uma plateia lotada e atenta, as convidadas discursaram sobre a importância da perspectiva da interseccionalidade na interpretação e na aplicação do direito e explicaram a relação dessa perspectiva com o direito à cidade. Além de dois painéis de debate, houve intervenções artísticas do duo Afrolíricas, formado pelas jovens poetas Anárvore e Iza Reys.
O evento foi realizado pela Coordenadoria de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação (Ccrad) e pelo Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (Ceaf) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), com recursos do Fundo Especial do MPMG, e transmitido, ao vivo, pela TV MP. A apresentação da ação educacional foi feita pela jornalista Sandrinha Flávia.
Na abertura do evento, o coordenador da Ccrad, promotor de Justiça Allender Barreto, destacou o ineditismo e a importância do encontro das palestrantes no MPMG. “Receber essas três pensadoras negras, que lançam luz sobre o debate interseccional, é um fato histórico nesta casa. É uma oportunidade de abertura de sentidos, de o MP se voltar ao seu compromisso originário, com o enfrentamento a todas as formas de discriminação”, observou.
Na sequência, a deputada estadual Macaé Evaristo, líder da Bancada Feminina na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, chamou a atenção para a presença maciça, na plateia, de mulheres que trabalham diariamente no combate ao racismo, nas mais diversas áreas, em todo o estado. “Vamos chegando e abrindo portas, com a certeza de que o futuro é ancestral, porque ele é uma mulher preta. Quando eu olho para trás, o que eu vejo são mulheres pretas na luta e, quando eu penso o futuro, eu penso mulheres pretas vitoriosas”, afirmou, parafraseando reflexões do líder indígena brasileiro Ailton Krenak a respeito do futuro.
A justiça é uma mulher negra
A promotora de Justiça Lívia Sant’Anna Vaz foi a palestrante do primeiro painel, intitulado “A justiça é uma mulher negra: a interseccionalidade como princípio constitucional” e presidido pela coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Promoção dos Direitos das Pessoas Idosas e das Pessoas com Deficiência do MPMG, promotora de Justiça Vânia Samira Doro.
Lívia, que publicou em 2021 um livro sobre o mesmo tema, iniciou sua apresentação mostrando a capa da obra: uma mulher negra segurando a balança da justiça. “Tenho certeza de que se eu pedisse para vocês imaginarem a justiça, a imagem que viria à cabeças de vocês não seria essa. É importante que tenhamos as nossas próprias referências. É por isso que eu a retrato como uma mulher negra e de olhos abertos”, explicou.
A promotora denunciou o racismo institucional existente no sistema de Justiça, observando que, embora tenha evoluído, a legislação contra crimes raciais não é aplicada no país. "O entendimento do sistema de Justiça de modo geral é que a intenção racista precisa ser inequivocamente demonstrada. Me digam como! Com a confissão? Eu nunca peguei, nesses nove anos em que trabalho na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo de Salvador, um caso em que a pessoa tenha me dito: eu sou racista mesmo. A resposta é sempre: foi uma brincadeira e outras alegações desse tipo”, informou.
De acordo com Lívia, mesmo trabalhando como promotora de Justiça há 20 anos, ela ainda precisa responder constantemente, nas audiências, à pergunta “Cadê a promotora de Justiça?”. Isso porque está consolidada no imaginário das pessoas a ideia de que mulheres negras não ocupam espaços de poder.
A palestrante alertou que representatividade importa, mas não basta. “Eu não quero ser a única negra em lugar nenhum. É cansativo e adoecedor. Temos uma justiça branca, masculina, que entende que racismo reverso existe. Precisamos de aliados e aliadas antirracistas para seguir abrindo caminhos, movimentando e fazendo com que o sistema cumpra o seu papel constitucional”, conclama.
Ao falar sobre mudanças necessárias para o enfrentamento ao racismo, a promotora aponta a necessidade de os juristas se deslocarem para o centro da encruzilhada interseccional e destaca a relevância da responsabilização das pessoas brancas. “Não é sobre culpa, mas sobre responsabilidade”, resume.
Interseccionalidade e direito à cidade
No segundo painel do evento, a doutora em estudos feministas Carla Akotirene e a arquiteta urbanista e psicanalista Joice Berth discutiram sobre como as interseções a que está submetida uma pessoa, em especial a mulher negra, relacionam-se ao direito à cidade. A mesa foi presidida pela promotora de Justiça Ana Gabriela Brito.
De acordo com Carla Akotirene, o problema do racismo estrutural está institucionalizado nas burocracias, nas normas, nos expedientes, nas formas pelas quais os letramentos não alcançam toda a produção teórica, filosófica e conceitual.
A escritora lembrou que a interseccionalidade é o intercruzamento de marcações sociais às quais as pessoas negras, em geral, e as mulheres negras, em particular, estão submetidas o tempo todo. E chamou a atenção para a necessidade de os aplicadores do direito terem um olhar interseccional, para não reproduzirem o racismo. “Agora, enquanto estou falando, três jovens negros foram mortos. O Brasil é o quinto do mundo em feminicídio. O que isso tem a ver com interseccionalidade? Se os aplicadores do direito, os operadores das políticas públicas não absorverem as tecnologias conceituais produzidas pelas intelectuais negras, vão falhar na avaliação, no monitoramento e na elaboração dessas políticas”, alertou.
A pesquisadora ressaltou que o racismo institucional prejudica toda a humanidade e criticou a prática conhecida como tokenismo. “É essa roupagem simbólica em que as instituições dizem ‘representatividade importa’, mas só há uma pessoa ali representando pautas históricas e sofrendo todos os ataques e assédios patriarcais, racistas, capitalistas, etários e geracionais”, explicou.
Carla Akotirene ainda defendeu a necessidade de se construir um estado em que caibam todas as inteligências do território.
Na sequência, Joice Berth elogiou a iniciativa do MPMG, salientando a importância de se falar sobre o assunto. “É muito corajosa a realização de eventos como este, que abrem espaço para pessoas que não trarão coisas confortáveis de se ouvir”.
A escritora abordou o problema da segregação racial e de gênero nos espaços urbanos e lembrou que a formação das cidades reflete uma complexa interseção de fatores históricos, sociais e econômicos. “É no território que o racismo se estabelece, que a gente vê como as dinâmicas dele, da misoginia, da luta de classe estão funcionando”, pontuou.
Para falar sobre o conceito de cidadania mutilada, referente à realidade social vivenciada pela população negra, Joice citou o geógrafo brasileiro Milton Santos. “Você não é um cidadão ou cidadã se não tem uma experiência completa de cidade. Nós não temos mobilidade urbana garantida, não temos horários irrestritos para o acesso aos espaços da cidade, não temos dinheiro para adquirir imóveis dentro da cidade”, exemplificou.
Ainda conforme a arquiteta urbanista, as opressões que estruturam a sociedade, em algum momento, também se voltam contra as pessoas que estão no topo na pirâmide social. “A gente precisa de cidades que reparem os danos que foram causados desde a sua formação. Não conseguiremos enfrentar o racismo, o machismo e a luta de classe sem olhar para as cidades e encontrar alternativas para fazer essa reparação”, alertou.
Ao final do evento, houve uma sessão de autógrafos do livro “A Justiça é uma mulher negra”, de Livia Sant’Anna Vaz.
Compuseram a mesa de abertura da ação educacional: a subcorregedora-geral do MPMG, Márcia Pinheiro de Oliveira Texeira; a líder da Bancada Feminina na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, deputada estadual Macaé Evaristo; a juíza auxiliar da presidência do TJMG, Mariana de Lima Andrade; a ouvidora do MPMG, Nádia Estela Ferreira Mateus; a diretora do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do MPMG, Élida de Freitas Rezende; o coordenador de Combate ao Racismo e Todas as Outras Formas de Discriminação do MPMG, Allender Barreto Lima Da Silva; e o secretário municipal de Segurança e Prevenção de Belo Horizonte, Genilson Zeferino.
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Fotos: Camila Soares/MPMG