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Há 28 anos, a Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu o Dia Internacional das Pessoas com Deficiência, celebrado em 3 de dezembro, com o objetivo principal de conscientizar a população a respeito da importância de assegurar uma melhor qualidade de vida a todos os deficientes ao redor do planeta. Conforme o órgão internacional, aproximadamente 10% da população do mundo possui algum tipo de deficiência, seja ela física, auditiva, visual, mental ou múltipla, quando duas ou mais deficiências estão associadas.

Nas últimas décadas, a sociedade deu passos importantes na garantia dos direitos desse grupo, figurando como marco principal a edição do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/2015, que compilou uma série de conquistas que estavam em andamento e pavimentou o caminho para novos avanços.

Ao lado do progresso na legislação, o desenvolvimento tecnológico, responsável pela multiplicação dos recursos e ferramentas digitais, também tem sido apontado como fator relevante no processo de melhoria da qualidade de vida das pessoas com deficiência. Muitos passos, contudo, ainda precisam ser dados para que haja uma maior inclusão dessas pessoas na sociedade e para que seus direitos sejam respeitados, o que busca o MPMG, por meio da Coordenadoria Estadual de Defesa do Direito de Família, das Pessoas com Deficiência e dos Idosos (CFDI) e das Promotorias de Justiça com atribuição na área.

Essas metas, contudo, só serão atingidas se a diferença e a diversidade estiverem permanentemente presentes nos variados espaços sociais. É o que pensa o analista de Pedagogia do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) Willian Lelis Braz Nascentes, um dos 79 servidores cadastrados na instituição como deficientes. Lotado na 23ª Promotoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Belo Horizonte, Willian ingressou no MPMG em 2003. Ele perdeu a visão quando tinha pouco mais de dois anos devido a uma causa inespecífica. Acredita-se que uma febre muito forte tenha desencadeado a atrofia de seu nervo óptico.

Com seis anos, Willian foi matriculado em uma escola para pessoas com deficiência visual, concluiu o ensino fundamental em um colégio especializado no atendimento a pessoas com esse tipo de deficiência em Belo Horizonte, cursou o ensino médio em uma escola pública e se formou em Pedagogia pela Universidade Federal de Minas Gerais.



Alfabetizado em braile, hoje o servidor usa diferentes recursos de acessibilidade na sua rotina profissional dentro da instituição. Mas nem sempre foi assim. “Quando eu entrei, não tínhamos nada que nos auxiliasse. Tudo era folha e processo físico. As coisas melhoraram muito nos últimos anos. Naquela época, era preciso comprar softwares caríssimos, que tinham o preço de um carro. Hoje temos leitores de tela gratuitos. O processo eletrônico, que vem ganhando espaço atualmente, também representa um ganho para a nossa autonomia”, avalia.

Cooperação
Willian, que também integra o coral da instituição há 10 anos, conta que sempre teve muito apoio tanto da coordenação da Promotoria onde trabalha, quanto dos colegas e da Procuradoria-Geral de Justiça e destaca o espírito de cooperação como o principal responsável pelas boas experiências no MPMG. “Na lógica do trabalho em equipe, a gente percebe que ninguém faz nada sozinho. O ser humano é um ser social. Todos nós temos necessidades. Alguns mais, outros menos, e nisso a gente aprende a cooperar. Da mesma forma que sempre contei com o apoio dos meus colegas, eu sempre cooperei com eles”.

Na opinião do servidor, as limitações são capazes de possibilitar o encontro com o outro e de gerar trabalhos mais qualificados. “No trabalho coletivo, a gente percebe a importância do outro na nossa vida, às vezes com a crítica, com o questionamento ou com o elogio. Quanto mais a gente conseguir incluir o ser humano na sociedade, melhor ela será”, acredita.

O pedagogo considera fundamental a busca por entender a potencialidade do outro e por conhecer a percepção dos diferentes grupos sociais. “Sejam pessoas com deficiência, negros, mulheres, LGBT+ ou outros. Qualquer diferença tem que ser vista como potência, não como limite. Assim que eu vejo a diversidade: como algo que nos complementa e nos faz melhores”.

Discriminação
Apesar das boas relações mantidas no dia a dia profissional, Willian ressalva que na sociedade, de maneira geral, muitas pessoas ainda enxergam limites na possibilidade de atuação das pessoas com deficiência, o que leva à discriminação. “O mundo nem sempre vai sorrir para você e abrir portas.

Muitas vezes você vai ter que empurrar essas portas mesmo, e vai precisar de apoio para isso. Nossa sociedade é muito padronizada, construída para um determinado modelo de ser humano. Ela não pensa na diferença”.

Neste contexto, para o servidor, as pessoas com deficiência desempenham uma tarefa importante.“Temos um papel fundamental na sociedade, primeiro por existir nela e não nos esconder. Precisamos frequentar os espaços públicos, como cinemas, bares, teatros. Estar nesses espaços é essencial para que as pessoas percebam que existem demanda e interesse da nossa parte”.

Também na percepção do pedagogo, muitas vezes, a família, querendo evitar que o filho não seja vítima de preconceito, isola-o, o que, para Willian, não ajuda no processo de transformação da realidade. “Qual o problema de perguntarem sobre a deficiência? A pergunta é o princípio do conhecimento. É fundamental que a gente conviva com o diferente. O campo de imaginação e percepção do outro só se abre a partir da nossa presença”.

Os reflexos do preconceito dependem, em grande medida, na análise do pedagogo, da postura que a pessoa com deficiência assume diante desses atos. “Você pode demonstrar para as pessoas que existem outras formas de fazer a mesma coisa, estimulando a criatividade e a capacidade de adaptação. E assim, muitas vezes, elas deixam de ver a limitação e passam a ver a potencialidade”.

Trabalho
A ocupação dos postos de trabalho por pessoas com deficiência, além de um direito, é apontada pelo analista como fundamental para se derrubar barreiras sociais. “O trabalho é muito importante para todos nós. Estar no nosso local de trabalho mostrando o que podemos fazer é essencial para que a sociedade mude. Eu tenho uma importância muito grande. Não sou mais importante que ninguém, mas sou tão importante quanto”.

Conforme o servidor, a presença dos profissionais com deficiência nas instituições públicas e no mercado de trabalho pode também despertar outras pessoas para suas potencialidades. “Quando um adolescente infrator vem aqui e vê um cego atendendo, ele acha interessante e isso pode abrir uma visão dos potenciais para ele. Esse jovem percebe que pode chegar a um lugar bacana e crescer na vida, se acreditar nisso e se tiver pessoas que acreditem nele e o apoiem”. Neste cenário, a relevância das ações afirmativas, como as cotas, também é destacada pelo pedagogo. De acordo com Willian, elas são ferramentas fundamentais de equiparação de oportunidades e de compensação de distorções sociais.

Rede de apoio
Diante das dificuldades muitas vezes geradas pela deficiência, contar com o apoio de colegas e amigos que vivenciam problemas parecidos pode contribuir na qualidade de vida de muitas pessoas. Por acreditar nisso é que a servidora Gisele Aparecida Vaz Feres da Cunha, 37 anos, analista de Direito na Secretaria das Promotorias de Justiça Criminais de Barbacena, resolveu criar, durante a quarentena, um grupo em um aplicativo de mensagens instantâneas, para conectar integrantes do MPMG que tenham alguma deficiência. A ideia foi sugerida pelo colega Wanderly Damascena Dutra, servidor aposentado da Promotoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Teófilo Otoni, após uma reunião realizada pela Superintendência de Recursos Humanos com servidores com deficiência.



Segundo Gisele, o grupo, que tinha a proposta inicial de possibilitar apenas trocas profissionais, acabou se tornando uma verdadeira rede de apoio para os participantes e um espaço de construção de amizades. “Muitas vezes, podemos nos sentir inferiores por conta da nossa deficiência e, quando estamos com pessoas parecidas, somos melhor compreendidos. Isso nos faz muito bem. Nos apoiamos em tudo, conversamos sobre adaptação, sobre a relação com as chefias, sobre acessibilidade. É muito bom. Até o momento, somos cerca de 20 pessoas”.

A servidora, que entrou no MPMG em 2013, convive desde a adolescência com a hemiparesia, uma deficiência física decorrente da esclerose múltipla. Por conta das limitações motoras dos membros do lado esquerdo do corpo, ela tem dificuldade de ficar em pé e de caminhar, precisando utilizar muleta. Na primeira cidade onde trabalhou, Ouro Preto, enfrentou problemas de adaptação por conta das restrições de acessibilidade do sítio histórico. Por isso, foi removida para sua cidade natal, onde encontrou uma situação mais favorável e um espaço de trabalho mais adaptado.

Na percepção da analista, quando a deficiência apresentada por alguém é visível, a sociedade respeita mais. “Quando ela não salta aos olhos, é sempre mais difícil. Muitas pessoas não acreditam nas dificuldades que você tem, não compreendem que, dependendo da tarefa, o desempenho não será igual. Sinto que faltam respeito, empatia e compreensão”, avalia.

Para Gisele, no ambiente de trabalho, as capacidades de dialogar e de buscar adaptar as dificuldades de forma conjunta são fundamentais, pois permitem conhecer e desenvolver o que de melhor cada integrante da equipe tem a oferecer. “Acho que é preciso aproveitar as pessoas, sendo elas deficientes ou não, na maior capacidade que elas têm. Quando conseguimos fazer o nosso trabalho e nos sentimos útil, é maravilhoso”.

A servidora afirma que o trabalho transformou sua vida. “Ele me trouxe inúmeras oportunidades. Estou muito feliz”.

A conquista da confiança
Combater o tráfico de drogas na sociedade é hoje a principal tarefa do promotor de Justiça Leonardo Costa Coscarelli, 41 anos, da 13ª Promotoria de Justiça de Tóxicos de Belo Horizonte. A função é desempenhada por ele – que convive com a deficiência visual desde recém-nascido – com imenso zelo e responsabilidade.

Leonardo é um dos quatro promotores de Justiça com deficiência na instituição. Ele teve a visão comprometida em decorrência do excesso de oxigenação da estufa onde precisou ser mantido ao nascer. Para desempenhar suas tarefas, conta com o auxílio de bengala, óculos de aumento, sintetizador de voz e ampliador de tela.



Membro do MPMG desde 2013, o promotor observa que a confiança dos colegas e da instituição em seu trabalho foi conquistada com o tempo. “Fui mostrando serviço e ganhando confiança. Hoje sou muito feliz com o que faço. Trabalho com algo extremamente sensível. Um erro meu pode virar um escândalo no jornal. Minha atuação no combate ao tráfico de drogas desvincula-se da ideia de que eu deveria estar ‘cuidando de cegos’”.

Leonardo considera que ser chefe de uma pessoa com deficiência é um grande desafio para qualquer profissional. “Quando a pessoa tende a dar algum tipo de problema, a tendência é jogá-la para escanteio e deixá-la de lado. Se a chefia encontra dificuldades para passar o trabalho de forma que a pessoa consiga fazer, opta, muitas vezes, por não passar nada”.

Para o promotor, a experiência com a deficiência pode levar ao desenvolvimento de características específicas nos profissionais, que são agregadoras para o mercado de trabalho. “A deficiência pode me limitar a me debruçar sobre uma grande quantidade de documentos, a confirmar assinaturas, por exemplo. Por outro lado, ela desenvolve bem a escuta, me faz prestar mais atenção e me coloca numa posição de disponibilidade maior para o outro, favorecendo o atendimento ao público. Pode, assim, auxiliar na construção de certo tipo de liderança e ajudar a formar equipes”.

Acessibilidade
Na percepção do promotor, a evolução da sociedade em termos tecnológicos acabou por trazer benefícios, de maneira especial, às pessoas com deficiência no campo da acessibilidade. As principais contribuições percebidas por ele foram a facilitação do acesso a materiais digitais e o desenvolvimento de aplicativos de celular que vêm aumentando a comodidade logística das pessoas. “Tivemos um aumento na mobilidade. Em Belo Horizonte, por exemplo, sabemos dos percalços enfrentados com o serviço tradicional de táxi, que, muitas vezes, não aceita cartão de crédito. Então, temos circunstâncias indiretas que vão influenciando na nossa qualidade de vida”.

No âmbito profissional, o promotor aponta como mudança positiva a troca de informações cada vez maior em formato digital – o que foi acelerado pelo contexto de pandemia do Covid-19. Ele destaca como avanços principais, no MPMG, a chegada do Processo Judicial Eletrônico (Pje) e o uso Sistema Eletrônico de Informações (SEI). “Esses são marcos importantes, mas é importante lembrar que pequenas atitudes no ambiente do trabalho podem fazer muita diferença em termos de produtividade também, como um e-mail enviado no formado adequado”.

Dificuldades de lidar com a deficiência

Leonardo também comentou sobre a dificuldade que as pessoas têm de lidar com a deficiência. Para ele, o desconhecimento sobre a situação e sobre como se relacionar com ela é o que gera a experiência da exclusão para muitos indivíduos. “As pessoas têm um pouco de dificuldade de se aproximar daquilo, de tomar atitudes. Por isso, muita gente pode encarar essa relação como uma experiência de exclusão. Ocorrem, ainda, alguns desvios, como a estereotipização das pessoas com deficiência como vencedores ou sua infantilização. Mas eu não colocaria essas situações na mesma balança de preconceito que outros tipos de discriminações, embora incomodem do mesmo jeito”.

O promotor observa, porém, que a conjugação de atributos sociais diferentes pode ampliar ou amenizar a discriminação sentida por pessoas com deficiência. “As pessoas têm vários papéis e atributos na sociedade. Podem ser mulheres, negras, ter nível de instrução mais baixo e esses atributos vão se misturando, gerando preconceitos e resistências. Eu tive uma experiência diferenciada, porque tenho um perfil aceitável. Tenho nível de cultura um tanto acima da média, sou branco, não me enquadro nos outros atributos que encontram essas resistências”.

Em todas as situações, porém, conforme Leonardo, a deficiência marcará a pessoa de uma forma transversal e exigirá esforços de superação. “Ela vai influenciar em várias coisas da vida, vai trazer uma série de limites, e a pessoa terá que encontrar seus caminhos para superar esses limites”.
 

 
 
 
 
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03/12/20

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